domingo, 13 de setembro de 2009

O frenesi genocida em Ruanda

Ocorreu em nossa época um dos maiores massacres da história humana: entre abril e julho de 1994, durante cem dias, cerca de 800 mil pessoas foram mortas em Ruanda, na África. Foi um genocídio, uma tentativa de eliminar todo um povo. O jornalista Philip Gourevitch escreveu um livro sobre o genocídio em Ruanda: Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias (São Paulo, Companhia das Letras, 2000), que também está disponível em edição de bolso. O autor esteve em Ruanda logo após o genocídio, viajou pelo país, conversou com pessoas as mais diversas, algumas das quais sobreviventes de massacres, e essa experiência foi fundamental para que escrevesse uma obra marcante, que deixa no leitor a impressão de ter vivido as histórias nela relatadas. Gourevitch foi entrevistado por Harry Kreisler na série Conversations with History. Outra boa fonte de informação sobre o genocídio é o documentário Ghosts of Rwanda.

A matança em Ruanda foi perpetrada pela maioria hutu contra a minoria tutsi. Os hutus eram lavradores e os tutsis eram pastores e pecuaristas. Houve miscigenação entre eles, e antes de 1959 nunca havia sido registrada violência política sistemática entre hutus e tutsis. As tensões foram intensificadas pelo colonizador belga (Ruanda fora transferida para a Bélgica pela Liga das Nações, como espólio da Primeira Guerra Mundial), que fez da etnicidade o traço definidor da existência ruandesa: carteiras de identidade étnicas rotulavam cada ruandês como hutu, tutsi ou twa. Crianças foram educadas pela doutrina da superioridade e inferioridade raciais, e a ideia de uma identidade nacional foi por água abaixo.

Tutsis foram favorecidos para altos cargos políticos e militares, e a palavra tutsi virou sinônimo de elite política e econômica. As elites tutsis tiveram poder ilimitado para explorar o trabalho dos hutus. Mais adiante foi adotado um sistema de cotas em favor dos hutus. As tensões entre hutus e tutsis aumentaram, e em dezembro de 1963 e janeiro de 1964 milhares de tutsis foram massacrados. Em meados de 1964, cerca de 250 mil tutsis haviam fugido do país, e o filósofo Bertrand Russell descreveu a situação em Ruanda naquele ano como “o mais horrível e sistemático massacre que tivemos ocasião de testemunhar desde o extermínio dos judeus pelos nazistas”.

Em 1961 foi abolida a monarquia e Ruanda foi declarada uma república. No ano seguinte o país conseguiu sua independência plena. Em julho de 1973, Juvénal Habyarimana declarou-se presidente, e no seu governo Ruanda era regulada mais rigidamente do que jamais havia sido antes. Por lei, cada cidadão era membro vitalício do partido do presidente, o Movimento Revolucionário Nacional pelo Desenvolvimento. Além disso, também havia leis de caráter discriminatório, como a que proibia membros das forças armadas de casar com tutsis.

No governo de Habyarimana, houve muitos escândalos de corrupção (verbas de projetos estrangeiros de ajuda eram desviadas). Havia portanto motivos para fazer oposição à ditadura de Habyarimana, cujo principal patrono estrangeiro era François Mitterand. Em outubro de 1990, a Frente Patriótica de Ruanda, exército rebelde que declarou guerra ao regime de Habyarimana, invadiu o nordeste de Ruanda a partir de Uganda. Os tutsis foram considerados “cúmplices” da FPR. Mais de 10 mil pessoas foram presas, e naquele mesmo mês houve o massacre de Kibilira (no qual 350 tutsis foram mortos).

Declarações explicitamente racistas eram toleradas nos meios de comunicação. Hassan Ngeze, defensor da supremacia hutu, editor do jornal Kanguka, concorrente de um jornal que fazia críticas a Habyarimana, o Kangura, publicou em 1990 um artigo que ficou famoso como Os Dez Mandamentos hutus, que circularam amplamente e tornaram-se muito populares. O oitavo mandamento, o mais citado, dizia: “Os hutus têm de parar de sentir pena dos tutsis”. A propaganda racista também era divulgada em comícios de “conscientização”. E o rádio foi usado na preparação do terreno para o massacre de Bugesera, em março de 1992 (em Ruanda, o rádio atingia um público mais amplo do que outros meios de comunicação).

Em 4 de agosto de 1993, o presidente Habyarimana assinou um acordo de paz com a FPR em Arusha, na Tanzânia, dando oficialmente fim à guerra. Os líderes do Poder Hutu queixaram-se de traição. Hassan Ngeze alertou: “Quem pensa que os Acordos de Arusha acabaram com a guerra está enganando a si mesmo”. Os acordos garantiam o direito de regresso aos exilados de Ruanda, prometiam a integração dos dois exércitos em conflito numa única força nacional de defesa e estabeleciam o projeto de um amplo governo de transição. Durante o período de implementação da paz, uma força de paz das Nações Unidas atuaria em Ruanda. A Unamir (Missão de Assistência das Nações Unidas em Ruanda) chegou a Ruanda no final de 1993.

Em 11 de janeiro de 1994, o general Roméo Dallaire, da Unamir, enviou um fax urgente ao Departamento de Operações de Paz da sede da ONU em Nova York, chefiado por Kofi Annan. No fax, com o título “Pedido de proteção a informante”, o general explicou que tal informante recebera ordem de registrar todos os tutsis de Kigali, capital de Ruanda, supostamente para o extermínio deles. O informante estaria preparado para divulgar a localização de um grande esconderijo de armamentos, desde que ele e sua família fossem postos sob a proteção da Unamir. O assessor de Annan, Iqbal Riza, respondeu a Dallaire rejeitando a operação sugerida no fax. Não foi feito nenhum esforço na sede das operações de paz para alertar o secretariado das Nações Unidas ou o Conselho de Segurança para a notícia de que um extermínio estava sendo planejado em Ruanda.

No dia 6 de abril de 1994, foi derrubado o avião em que estavam o presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, vários de seus altos conselheiros e o novo presidente do Burundi. Morreram todas as pessoas que estavam no avião, que sobrevoava Kigali, voltando de Dar es Salaam, na Tanzânia. O poder ficou nas mãos de líderes do Poder Hutu que faziam parte do alto comando militar. Começou logo depois o genocídio dos tutsis. As tropas das Nações Unidas ofereceram pouca resistência aos assassinos. Por toda Ruanda, estupros e saques em massa acompanharam a matança.

Centenas de milhares de hutus trabalharam como assassinos em turnos regulares. Todos foram chamados a caçar o inimigo. Houve massacres em escolas, hospitais e até mesmo em igrejas. Numa delas, localizada na montanha rochosa de Nyarubuye, Philip Gourevitch viu dezenas de corpos que cobriam o chão treze meses após a chacina. Em Mugonero, sete pastores (que estavam num hospital com duas mil pessoas que seriam atacadas) escreveram uma carta ao superior deles, Elizaphan Ntakirutimana (que seria indiciado no Tribunal Internacional das Nações Unidas para Ruanda), na qual constava a expressão do título do livro de Gourevitch: “Desejamos informar-lhe que soubemos que amanhã seremos mortos junto com nossas famílias”.

O Hôtel des Milles Collines foi o único lugar em Ruanda em que nada menos que mil pessoas marcadas para morrer se concentraram e ninguém foi morto, aprisionado ou espancado. O gerente do hotel, Paul Rusesabagina, tentou salvar todas as pessoas que pôde. Usou a linha de fax do hotel para entrar em contato com pessoas que garantiram a segurança do hotel, ameaçada várias vezes. No final de abril, Kigali estava dividida: a leste a FPR detinha o controle, a oeste a cidade pertencia ao governo. Se a FPR não tivesse encurralado o Poder Hutu, provavelmente nenhuma das pessoas que estavam no hotel teria sobrevivido.

A FPR controlava a parte leste de Ruanda, e suas forças moviam-se firmemente para o oeste. Um quarto de milhão de hutus, entre os quais muitos assassinos, desaguaram na Tanzânia, em debandada diante do avanço da FPR, e eram recebidos de braços abertos pela ONU e agências humanitárias. A FPR, na época constituída de cerca de 20 mil combatentes, estava forçando ao recuo um exército nacional com o dobro de seu tamanho. Em 2 de julho, a FPR conquistou Butare, em 4 de julho tomou Kigali, e em 19 de julho, o novo governo foi empossado em Kigali (um dos primeiros atos do novo governo foi abolir o sistema de cédulas de identidade étnica). A FPR (liderada por Paul Kagame, que em 2003 seria eleito presidente de Ruanda) foi a única força militar no mundo a responder às exigências da Convenção do Genocídio de 1948.

No final de 1997, pelo menos 125 mil hutus acusados de crimes durante o genocídio estavam encarcerados em Ruanda. Para aliviar a lotação das cadeias, foi preciso estabelecer gradações de criminalidade entre os génocidaires. Havia uma lista de quatrocentos génocidaires chefes que estavam no exílio. A maior concentração dos “mais procurados” de Ruanda estava estabelecida no Zaire e no Quênia, Estados governados por presidentes que haviam sido íntimos de Habyarimana (Mobutu Sese Seko e Daniel Arap Moi).

Na discussão sobre a justiça em Ruanda, Philip Gourevitch cita a questão da verdade objetiva. É um trecho ao qual especialmente os professores de Filosofia deveriam prestar atenção: “A guerra a respeito do genocídio era uma autêntica guerra pós-moderna: uma batalha entre, de um lado, os que acreditavam que, já que as realidades que habitamos são construções da nossa imaginação, elas são igualmente verdadeiras e falsas, válidas e inválidas, justas e injustas, e, do outro lado, os que acreditavam que as construções da realidade podem – aliás, devem – ser julgadas como certas ou erradas, boas ou más. Enquanto os debates acadêmicos sobre a possibilidade da verdade objetiva são frequentemente abstratos a ponto de atingir o absurdo, Ruanda demonstrou que se trata de uma questão de vida ou morte” (p. 302).

Houve uma longa preparação para o genocídio. Em 1994, Ruanda era vista como um caso de caos e anarquia associados a Estados em colapso, mas, como escreve Gourevitch, “o genocídio era o produto da ordem, do autoritarismo, de décadas de teoria e doutrinação política moderna, e de um dos Estados mais meticulosamente administrados da história” (p. 114). Na página seguinte, o autor comenta a afirmação de que o assassinato em escala industrial do Holocausto põe em questão a noção de progresso humano e de que sem toda aquela tecnologia os alemães não poderiam ter assassinado todos aqueles judeus. Entretanto, foram os alemães, não as máquinas, que realizaram a matança, sustenta Gourevitch. Em Ruanda, o subdesenvolvimento tecnológico não foi obstáculo ao genocídio: o povo era a arma; a população hutu inteira tinha de matar a população tutsi inteira, de acordo com os líderes do Poder Hutu.

Em 21 de abril de 1994, o comandante da Unamir, general Dallaire, declarou que, com apenas 5 mil soldados bem equipados e carta branca para combater o Poder Hutu, ele poderia deter rapidamente o genocídio. No mesmo dia, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que reduzia o contingente da Unamir em 90%. O Conselho de Segurança não foi capaz sequer de aprovar uma resolução que contivesse a palavra genocídio. A incompetência da ONU para resolver a crise em Ruanda é algo que deve ser sempre lembrado. Também é revoltante a escandalosa cumplicidade das autoridades políticas e militares da França na preparação e implementação da carnificina.

Nove meses depois que a FPR libertou Kigali, mais de 750 mil ex-exilados tutsis estavam de volta a Ruanda. Os ruandeses em regresso vinham de toda a África e de ainda mais longe. Mesmo os líderes da FPR estavam espantados com a escala dessa volta. Outros milhares de ruandeses voltaram ao seu país depois do desmantelamento dos campos de refugiados no Zaire (controlados por génocidaires hutus), o que ocorreu após os combates em que a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo/Zaire, de Laurent Kabila, afastou do poder o ditador Mobutu.

No final do livro, para responder às frequentes perguntas sobre as esperanças para o futuro de Ruanda, Gourevitch cita uma história que aconteceu numa escola daquele país. Alunas adolescentes que receberam a ordem de se separarem (tutsis de um lado, hutus de outro) disseram que eram simplesmente ruandesas, e por isso foram espancadas e alvejadas indiscriminadamente. O exemplo das garotas que poderiam ter escolhido viver, mas em vez disso escolheram chamar a si próprias de ruandesas, deixando de lado noções equivocadas sobre raças humanas, algo que não existe, dá esperanças de que seja mais difundida a ideia da unidade e da dignidade da espécie humana e de que atrocidades como as de Ruanda em 1994 não se repitam no futuro.