domingo, 13 de setembro de 2009

Uma história do Gulag

Pouco conhecida é a história de um dos maiores crimes contra a humanidade. O Gulag (acrônimo de Glavnoe Upravlenie Lagerei – Administração Central dos Campos), foi uma rede de campos de trabalho forçado que se espalhava por toda a União Soviética. Cerca de dezoito milhões de pessoas passaram por esse sistema de trabalho escravo, tema do livro Gulag, de Anne Applebaum (São Paulo, Ediouro, 2004).
Só recentemente foi possível o conhecimento mais aprofundado sobre a história do Gulag, o que em décadas passadas foi dificultado por escassez de fontes, arquivos fechados e proibição do acesso aos locais dos campos. Ademais, a propaganda soviética e a pressão sobre jornalistas e intelectuais do Ocidente mantiveram a atração dos ideais comunistas. Foram feitos esforços para esconder os crimes cometidos no sistema de trabalho escravo. É notável a escassez de imagens do stalinismo na cultura popular ocidental.
O terror em massa já existia nos primeiros anos do regime comunista. Com o auxílio da polícia secreta, inicialmente chamada de Cheka, houve grande aumento do número de detenções após o golpe bolchevique, e muitos presos foram torturados ou fuzilados. A imoderação e o sectarismo de Lenin se manifestavam em sua visão dos campos de trabalhos forçados como forma especial de punição para certo tipo de “inimigo”. Em 1918, Lenin exigia o encarceramento de “inimigos do povo” em campos de concentração. Em 1921, já havia 84 campos.
A partir de 1929, os campos passam a ser controlados pela polícia secreta soviética, e entram em rápida expansão com o impulso das prisões em massa. Stalin usaria o trabalho forçado para acelerar a industrialização e explorar os recursos naturais do extremo norte do país. Os campos tiveram papel crucial na economia soviética. Anne Applebaum cita algumas das diversas atividades nas quais os presos trabalhavam: derrubada e corte de árvores, transporte dessa madeira, mineração, construção civil, manufatura, agropecuária, projeto de aviões e peças de artilharia.
Embora nazismo e comunismo estabelecessem categorias de “subumanos”, a definição de “inimigo” na União Soviética era muito mais vaga do que a de judeu na Alemanha nazista. Ainda que muitas pessoas tenham morrido no Gulag, o sistema soviético não era propositalmente organizado para produzir cadáveres em escala industrial. Na União Soviética, os presos eram tratados como gado, mas o propósito primordial do Gulag era econômico. Se é verdade que a forma específica de homicídio praticada no auge do Holocausto não teve equivalente na URSS, no Gulag os presos também morriam, como afirmou Applebaum, em geral graças não à eficiência dos captores, e sim à incompetência e à negligência crassas.
Um dos primeiros campos de trabalho estava situado nas ilhas do Arquipélago de Solovetsky, no Mar Branco. Era um local isolado, no qual havia a necessidade de lutar contra as forças da natureza. Em relação ao tratamento dos presos, havia uma combinação de negligência criminosa com crueldade fortuita. As más condições de Solovetsky eram semelhantes às de outros campos: catastróficas condições de higiene, excesso de trabalho, alimentação ruim e doenças. Os presos eram divididos em três grupos: os capazes de trabalho pesado, os capazes de serviços leves e os inválidos, e eram alimentados segundo o trabalho produzido. A meta, não alcançada, era a de que os campos fossem auto-sustentáveis. Havia anistias periódicas para economizar dinheiro.
O ano de 1929 é caracterizado como o da Grande Guinada, quando Stalin estabelece políticas que consagram o seu poder. É a época do programa de industrialização rápida, da coletivização da agricultura, da prisão, degredo e fuzilamento dos kulaks (camponeses prósperos, ou acusados de se opor às autoridades). Stalin acreditava nas vantagens da mão-de-obra prisional, e influenciou diretamente o desenvolvimento dos campos. Foram feitas detenções em massa, com o objetivo de eliminar inimigos e criar trabalhadores escravos.
Stalin gostava de projetos grandiosos. Um deles foi o da construção do Canal do Mar Branco, realizada com pressa extrema e falta de planejamento. Foi o único projeto do Gulag que se expôs plenamente às luzes da propaganda soviética. Intelectuais produziam relatos fantasiosos sobre a construção do canal e o suposto poder reabilitativo dos campos. Presos trabalhavam em péssimas condições, num frio congelante e com falta de alimentos. E a rota de navegação do Mar Báltico ao Mar Branco não foi urgentemente necessária.
Mais adiante, o sistema de trabalho prisional é implementado por todo o país, mesmo em regiões inóspitas como a de Kolyma, no extremo nordeste da Sibéria. Ainda hoje há locais em que estradas e prédios foram construídos por presos. Muitas vezes os presos eram levados para regiões selvagens e vazias. Ficavam em aldeias sem banhos, estradas, serviços postais e cabos telefônicos. As autoridades se interessavam pelas taxas de mortalidade de presos apenas quando estas eram suficientemente elevadas para afetar os índices de produtividade prisional.
Os anos de 1937 e 1938 são lembrados como os do Grande Terror. Com a mania de prisões e execuções, a população fica aterrorizada e confusa. Pioram as condições de vida dos presos políticos, expressão que teria conotação negativa. Houve grande aumento do número de presos e queda da produtividade do sistema Gulag. A evidente produtividade inferior do trabalho de presos não impediu, no entanto, que houvesse aumento do número de campos.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, aumenta a repressão, e os presos políticos são proibidos de deixar os campos, nos quais havia epidemias e escassez de comida. Nos anos de guerra, mais de 2 milhões de pessoas morreram nos campos e mais de 10 mil foram executadas. Além disso, milhares de presos foram assassinados em cidades polonesas e bálticas. Nos campos soviéticos, houve evacuações em meio ao pânico da guerra. Presos fizeram longas marchas forçadas, e muitos não chegaram a seus destinos.
Depois de 1939, aumenta o número de estrangeiros nos campos, os “estranhos”. Foi notável o efeito da deportação e da guerra sobre a demografia dos países bálticos, que tiveram suas populações reduzidas. Particularmente tocantes são as memórias das crianças sobre as deportações. Havia o interesse das autoridades de que fosse povoado o extremo norte do país. As minorias soviéticas tiveram destino cruel, uma vez que muitos indivíduos foram considerados “espiões”. Tártaros e chechenos foram deportados em trens lacrados, sem água e alimento.
Pode-se falar em genocídio cultural, uma vez que embora esses povos não tenham sido totalmente dizimados, pois poderiam ser aproveitados para o trabalho escravo, foram submetidos a uma devastação cultural, com a tentativa de eliminar línguas e religiões. Na mesma época, também houve outros horrores: a prisão de civis nos países da Europa Central, os campos para prisioneiros de guerra e o massacre de Katyn, em que milhares de poloneses foram mortos pelos soviéticos.
Após a conferência de Yalta, cidadãos soviéticos tiveram de voltar a seu país, mesmo contra a vontade. Mais de vinte mil cossacos foram repatriados por ordens de Churchill. Soldados britânicos colocaram milhares de mulheres e crianças que viviam na Áustria em trens com destino à URSS, onde os aguardavam a morte ou a escravidão no Gulag.
No período após a guerra, milhares de prisioneiros foram soltos, embora os prisioneiros políticos e os criminosos de carreira não tivessem permissão para partir. O Gulag contribuiu para o esforço de guerra, já que boa parte da economia dependia dele. Aparecem, no entanto, francos relatos sobre o sistema soviético de trabalho escravo. Foi uma época em que também aumentou a influência soviética na Europa Central.
Começa então a Guerra Fria, e com as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki aumenta o interesse pela produção militar e industrial na União Soviética. A emergência de uma nova ameaça à URSS foi ao encontro dos propósitos de Stalin: o início dos anos 50 é o do apogeu do Gulag, quando o sistema teve o maior número de presos. Depois da morte de Stalin, em 1953, chega ao fim a era do Gulag. Embora ainda houvesse campos de trabalho e presos políticos, deixou de haver a exploração do trabalho escravo em grande escala.
Cresce a inquietação entre os presos, que ficam galvanizados com a notícia da greve geral em Berlim Oriental, esmagada pelos tanques soviéticos. Presos entram em greve e começam a negociar com as autoridades, mas no final são brutalmente reprimidos. No entanto, mais adiante as autoridades perdem o apetite pelos campos. Fica evidente a falta de lucratividade deles. Aumenta o debate sobre a justiça stalinista e o grande número de pessoas inocentes presas e executadas naquela época.
Krutchev ataca Stalin e o culto à personalidade, mas num discurso tendencioso, que ocultava a própria responsabilidade por crimes do passado. Acelera-se o processo de libertação e reabilitação e o Gulag é dissolvido, mas não houve mudança nos sistemas judicial e prisional. Muitos presos que eram libertados morriam na jornada de retorno. Estavam sem dinheiro, sem comida, com dificuldade para conseguir trabalho. O retorno dos veteranos dos campos era uma prova viva da violência. Nem sempre era fácil falar sobre os campos com amigos e familiares. Havia o medo da polícia secreta. E eram histórias tristes, que abalavam as pessoas.
Ampliou-se o debate público sobre o stalinismo. Foi permitido o lançamento do livro Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Alexander Solzhenitsyn (Prêmio Nobel de Literatura de 1970), que passou pelos campos. O livro descreve a vida nos campos com uma franqueza perturbadora, em contraste com a ficção vazia e falsa do “realismo socialista”. Solzhenitsyn recebe muitas cartas, algumas de prisioneiros satisfeitos por encontrar na obra dele a descrição das próprias experiências nos campos. Mais adiante, no entanto, os conservadores do regime reagem e Solzhenitsyn sofre ataques severos. Ele é expulso do país e a publicação de seus livros é proibida.
Depois do fim da era de trabalho escravo em massa na URSS, o regime tenta dar uma aparência de legalidade a seus atos. Escritores são julgados e condenados. Famoso foi o caso de Joseph Brodsky (Prêmio Nobel de Literatura de 1987), grande poeta e ensaísta, acusado de “parasitismo”. Foi considerado vadio por não ser poeta licenciado pelo Sindicato dos Escritores. Abandonou a escola aos quinze anos e teve uma série de empregos temporários. Protegido de Anna Akhmatova, seus poemas eram lidos em encontros literários secretos.
Na página 591, Anne Applebaum cita respostas de Brodsky às perguntas de um juiz:
- Qual é a sua profissão?
- Sou poeta.
- Quem o reconhece como poeta? Quem lhe deu autoridade para se intitular poeta?
- Ninguém. Quem me deu autorização para fazer parte da raça humana?
- Estudou para isso?
- Para quê?
- Para ser poeta. Por que não continua os estudos numa escola onde podem prepará-lo,onde pode aprender?
- Não acho que se possa aprender poesia.
- Como assim?
- Acho que ela é um dom de Deus.
Curioso é o fato de que o juiz declarou que Brodsky “não era poeta”. Alguns anos depois, ganharia o Nobel. Brodsky foi condenado a cinco anos de trabalho pesado numa colônia penal perto de Arkhangelsk, mas conseguiu uma vitória no sentido de que o seu desafio da lógica do sistema legal soviético e o registro desse desafio para a posteridade fizeram com que ele se tornasse um modelo a ser seguido por outros. Dois anos depois, Brodsky foi solto e posteriormente expulso da União Soviética.
Surge o movimento soviético pelos direitos humanos. Algumas dessas pessoas protestavam em Moscou contra a invasão soviética da Tchecoslováquia, e logo foram reprimidas pela KGB. No entanto, a perseguição aos dissidentes é tratada em edições clandestinas (samizdat). Dessa forma também são divulgados trabalhos de autores como Alexander Solzhenitsyn, Varlam Shalamov e Evgeniya Ginzburg. A história do stalinismo e do Gulag estavam entre os temas da samizdat. E o Crônica dos acontecimentos atuais, jornal interno da samizdat soviética, tornou-se a principal fonte de informações sobre a vida nos campos soviéticos pós-stalinistas.
O regime soviético passa a usar os hospitais psiquiátricos na tentativa de desqualificar os dissidentes, considerados loucos. A retratação era o objetivo. Entretanto, os horrores do abuso psiquiátrico chamaram a atenção internacional, gerando publicidade ruim para a União Soviética. Foram enviadas cartas de protesto para a Academia de Ciência Soviética, e houve manifestações de dissidentes famosos, como Alexander Solzhenitsyn e Andrei Sakharov.
Em 1985, Gorbatchev foi nomeado secretário-geral do PCUS, e então se aceleram as mudanças que no final levaram ao desaparecimento da União Soviética. É verdade que esse não era o objetivo de Gorbatchev, mas a publicação de obras até então proibidas e as novas revelações dos arquivos soviéticos mostraram a força do passado oculto. Já não era possível sustentar o mito da grandeza soviética, e o governo perdeu legitimidade. No final de 1986, houve o perdão a todos os prisioneiros políticos do país. Os campos em que eles trabalhavam foram fechados. As antigas repúblicas se tornaram independentes.
Embora tenha constatado a existência de discussão pública sobre o Gulag em ex-repúblicas e ex-estados satélites soviéticos, além de monumentos e homenagens aos mortos do Gulag na Rússia, Anne Applebaum afirma que esses esforços tem sido insuficientes e imperfeitos. Não há na Rússia um museu nacional dedicado à história da repressão nem investigação oficial sobre os campos de trabalho. Há um silêncio público, um medo de investigar o passado atentamente. Anne Applebaum diz que na Rússia para muitas pessoas o passado é um pesadelo a ser esquecido ou um boato a ser ignorado, não uma responsabilidade, uma obrigação.
Além de ser escrito com clareza, o livro de Anne Applebaum não se limita a citar dados e estatísticas. Ao contrário, faz uma investigação sobre as vidas das pessoas. Ela fez entrevistas com sobreviventes do Gulag. Usou várias fontes no seu trabalho, enriquecido com uma excelente bibliografia para aqueles que pretendem fazer estudos mais aprofundados. É um trabalho notável de pesquisa, que nos conta histórias inesquecíveis sobre a vida no Gulag.
Num simples artigo não há espaço para relatar todos os aspectos do Gulag, mas a citação dos títulos dos capítulos centrais, da parte chamada A vida e o trabalho nos campos, dá uma ideia dos temas tratados: a detenção, a cadeia, traslado, chegada e seleção, a vida nos campos, o trabalho nos campos, punição e recompensa, os guardas, os presos, as mulheres e as crianças, os moribundos, estratégias de sobrevivência e rebelião e fuga. São capítulos que descrevem fatos chocantes, atrocidades que nos fazem pensar sobre o lado sombrio da natureza humana.
O escritor Milan Kundera afirmou que “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Milhões de pessoas foram presas, escravizadas e mortas nos campos de trabalho da União Soviética. Fatos de tamanha relevância histórica não podem ser esquecidos pelas classes letradas. E não foram poucos os intelectuais que consideravam aquele país um modelo a ser seguido. As filosofias totalitaristas ainda têm um forte apelo. Lutar contra essas teorias, mostrar os fatos que, inspirados por elas, destruíram tantas vidas, é tarefa fundamental para a valorização da dignidade do ser humano.



O frenesi genocida em Ruanda

Ocorreu em nossa época um dos maiores massacres da história humana: entre abril e julho de 1994, durante cem dias, cerca de 800 mil pessoas foram mortas em Ruanda, na África. Foi um genocídio, uma tentativa de eliminar todo um povo. O jornalista Philip Gourevitch escreveu um livro sobre o genocídio em Ruanda: Gostaríamos de informá-lo de que amanhã seremos mortos com nossas famílias (São Paulo, Companhia das Letras, 2000), que também está disponível em edição de bolso. O autor esteve em Ruanda logo após o genocídio, viajou pelo país, conversou com pessoas as mais diversas, algumas das quais sobreviventes de massacres, e essa experiência foi fundamental para que escrevesse uma obra marcante, que deixa no leitor a impressão de ter vivido as histórias nela relatadas. Gourevitch foi entrevistado por Harry Kreisler na série Conversations with History. Outra boa fonte de informação sobre o genocídio é o documentário Ghosts of Rwanda.

A matança em Ruanda foi perpetrada pela maioria hutu contra a minoria tutsi. Os hutus eram lavradores e os tutsis eram pastores e pecuaristas. Houve miscigenação entre eles, e antes de 1959 nunca havia sido registrada violência política sistemática entre hutus e tutsis. As tensões foram intensificadas pelo colonizador belga (Ruanda fora transferida para a Bélgica pela Liga das Nações, como espólio da Primeira Guerra Mundial), que fez da etnicidade o traço definidor da existência ruandesa: carteiras de identidade étnicas rotulavam cada ruandês como hutu, tutsi ou twa. Crianças foram educadas pela doutrina da superioridade e inferioridade raciais, e a ideia de uma identidade nacional foi por água abaixo.

Tutsis foram favorecidos para altos cargos políticos e militares, e a palavra tutsi virou sinônimo de elite política e econômica. As elites tutsis tiveram poder ilimitado para explorar o trabalho dos hutus. Mais adiante foi adotado um sistema de cotas em favor dos hutus. As tensões entre hutus e tutsis aumentaram, e em dezembro de 1963 e janeiro de 1964 milhares de tutsis foram massacrados. Em meados de 1964, cerca de 250 mil tutsis haviam fugido do país, e o filósofo Bertrand Russell descreveu a situação em Ruanda naquele ano como “o mais horrível e sistemático massacre que tivemos ocasião de testemunhar desde o extermínio dos judeus pelos nazistas”.

Em 1961 foi abolida a monarquia e Ruanda foi declarada uma república. No ano seguinte o país conseguiu sua independência plena. Em julho de 1973, Juvénal Habyarimana declarou-se presidente, e no seu governo Ruanda era regulada mais rigidamente do que jamais havia sido antes. Por lei, cada cidadão era membro vitalício do partido do presidente, o Movimento Revolucionário Nacional pelo Desenvolvimento. Além disso, também havia leis de caráter discriminatório, como a que proibia membros das forças armadas de casar com tutsis.

No governo de Habyarimana, houve muitos escândalos de corrupção (verbas de projetos estrangeiros de ajuda eram desviadas). Havia portanto motivos para fazer oposição à ditadura de Habyarimana, cujo principal patrono estrangeiro era François Mitterand. Em outubro de 1990, a Frente Patriótica de Ruanda, exército rebelde que declarou guerra ao regime de Habyarimana, invadiu o nordeste de Ruanda a partir de Uganda. Os tutsis foram considerados “cúmplices” da FPR. Mais de 10 mil pessoas foram presas, e naquele mesmo mês houve o massacre de Kibilira (no qual 350 tutsis foram mortos).

Declarações explicitamente racistas eram toleradas nos meios de comunicação. Hassan Ngeze, defensor da supremacia hutu, editor do jornal Kanguka, concorrente de um jornal que fazia críticas a Habyarimana, o Kangura, publicou em 1990 um artigo que ficou famoso como Os Dez Mandamentos hutus, que circularam amplamente e tornaram-se muito populares. O oitavo mandamento, o mais citado, dizia: “Os hutus têm de parar de sentir pena dos tutsis”. A propaganda racista também era divulgada em comícios de “conscientização”. E o rádio foi usado na preparação do terreno para o massacre de Bugesera, em março de 1992 (em Ruanda, o rádio atingia um público mais amplo do que outros meios de comunicação).

Em 4 de agosto de 1993, o presidente Habyarimana assinou um acordo de paz com a FPR em Arusha, na Tanzânia, dando oficialmente fim à guerra. Os líderes do Poder Hutu queixaram-se de traição. Hassan Ngeze alertou: “Quem pensa que os Acordos de Arusha acabaram com a guerra está enganando a si mesmo”. Os acordos garantiam o direito de regresso aos exilados de Ruanda, prometiam a integração dos dois exércitos em conflito numa única força nacional de defesa e estabeleciam o projeto de um amplo governo de transição. Durante o período de implementação da paz, uma força de paz das Nações Unidas atuaria em Ruanda. A Unamir (Missão de Assistência das Nações Unidas em Ruanda) chegou a Ruanda no final de 1993.

Em 11 de janeiro de 1994, o general Roméo Dallaire, da Unamir, enviou um fax urgente ao Departamento de Operações de Paz da sede da ONU em Nova York, chefiado por Kofi Annan. No fax, com o título “Pedido de proteção a informante”, o general explicou que tal informante recebera ordem de registrar todos os tutsis de Kigali, capital de Ruanda, supostamente para o extermínio deles. O informante estaria preparado para divulgar a localização de um grande esconderijo de armamentos, desde que ele e sua família fossem postos sob a proteção da Unamir. O assessor de Annan, Iqbal Riza, respondeu a Dallaire rejeitando a operação sugerida no fax. Não foi feito nenhum esforço na sede das operações de paz para alertar o secretariado das Nações Unidas ou o Conselho de Segurança para a notícia de que um extermínio estava sendo planejado em Ruanda.

No dia 6 de abril de 1994, foi derrubado o avião em que estavam o presidente de Ruanda, Juvénal Habyarimana, vários de seus altos conselheiros e o novo presidente do Burundi. Morreram todas as pessoas que estavam no avião, que sobrevoava Kigali, voltando de Dar es Salaam, na Tanzânia. O poder ficou nas mãos de líderes do Poder Hutu que faziam parte do alto comando militar. Começou logo depois o genocídio dos tutsis. As tropas das Nações Unidas ofereceram pouca resistência aos assassinos. Por toda Ruanda, estupros e saques em massa acompanharam a matança.

Centenas de milhares de hutus trabalharam como assassinos em turnos regulares. Todos foram chamados a caçar o inimigo. Houve massacres em escolas, hospitais e até mesmo em igrejas. Numa delas, localizada na montanha rochosa de Nyarubuye, Philip Gourevitch viu dezenas de corpos que cobriam o chão treze meses após a chacina. Em Mugonero, sete pastores (que estavam num hospital com duas mil pessoas que seriam atacadas) escreveram uma carta ao superior deles, Elizaphan Ntakirutimana (que seria indiciado no Tribunal Internacional das Nações Unidas para Ruanda), na qual constava a expressão do título do livro de Gourevitch: “Desejamos informar-lhe que soubemos que amanhã seremos mortos junto com nossas famílias”.

O Hôtel des Milles Collines foi o único lugar em Ruanda em que nada menos que mil pessoas marcadas para morrer se concentraram e ninguém foi morto, aprisionado ou espancado. O gerente do hotel, Paul Rusesabagina, tentou salvar todas as pessoas que pôde. Usou a linha de fax do hotel para entrar em contato com pessoas que garantiram a segurança do hotel, ameaçada várias vezes. No final de abril, Kigali estava dividida: a leste a FPR detinha o controle, a oeste a cidade pertencia ao governo. Se a FPR não tivesse encurralado o Poder Hutu, provavelmente nenhuma das pessoas que estavam no hotel teria sobrevivido.

A FPR controlava a parte leste de Ruanda, e suas forças moviam-se firmemente para o oeste. Um quarto de milhão de hutus, entre os quais muitos assassinos, desaguaram na Tanzânia, em debandada diante do avanço da FPR, e eram recebidos de braços abertos pela ONU e agências humanitárias. A FPR, na época constituída de cerca de 20 mil combatentes, estava forçando ao recuo um exército nacional com o dobro de seu tamanho. Em 2 de julho, a FPR conquistou Butare, em 4 de julho tomou Kigali, e em 19 de julho, o novo governo foi empossado em Kigali (um dos primeiros atos do novo governo foi abolir o sistema de cédulas de identidade étnica). A FPR (liderada por Paul Kagame, que em 2003 seria eleito presidente de Ruanda) foi a única força militar no mundo a responder às exigências da Convenção do Genocídio de 1948.

No final de 1997, pelo menos 125 mil hutus acusados de crimes durante o genocídio estavam encarcerados em Ruanda. Para aliviar a lotação das cadeias, foi preciso estabelecer gradações de criminalidade entre os génocidaires. Havia uma lista de quatrocentos génocidaires chefes que estavam no exílio. A maior concentração dos “mais procurados” de Ruanda estava estabelecida no Zaire e no Quênia, Estados governados por presidentes que haviam sido íntimos de Habyarimana (Mobutu Sese Seko e Daniel Arap Moi).

Na discussão sobre a justiça em Ruanda, Philip Gourevitch cita a questão da verdade objetiva. É um trecho ao qual especialmente os professores de Filosofia deveriam prestar atenção: “A guerra a respeito do genocídio era uma autêntica guerra pós-moderna: uma batalha entre, de um lado, os que acreditavam que, já que as realidades que habitamos são construções da nossa imaginação, elas são igualmente verdadeiras e falsas, válidas e inválidas, justas e injustas, e, do outro lado, os que acreditavam que as construções da realidade podem – aliás, devem – ser julgadas como certas ou erradas, boas ou más. Enquanto os debates acadêmicos sobre a possibilidade da verdade objetiva são frequentemente abstratos a ponto de atingir o absurdo, Ruanda demonstrou que se trata de uma questão de vida ou morte” (p. 302).

Houve uma longa preparação para o genocídio. Em 1994, Ruanda era vista como um caso de caos e anarquia associados a Estados em colapso, mas, como escreve Gourevitch, “o genocídio era o produto da ordem, do autoritarismo, de décadas de teoria e doutrinação política moderna, e de um dos Estados mais meticulosamente administrados da história” (p. 114). Na página seguinte, o autor comenta a afirmação de que o assassinato em escala industrial do Holocausto põe em questão a noção de progresso humano e de que sem toda aquela tecnologia os alemães não poderiam ter assassinado todos aqueles judeus. Entretanto, foram os alemães, não as máquinas, que realizaram a matança, sustenta Gourevitch. Em Ruanda, o subdesenvolvimento tecnológico não foi obstáculo ao genocídio: o povo era a arma; a população hutu inteira tinha de matar a população tutsi inteira, de acordo com os líderes do Poder Hutu.

Em 21 de abril de 1994, o comandante da Unamir, general Dallaire, declarou que, com apenas 5 mil soldados bem equipados e carta branca para combater o Poder Hutu, ele poderia deter rapidamente o genocídio. No mesmo dia, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que reduzia o contingente da Unamir em 90%. O Conselho de Segurança não foi capaz sequer de aprovar uma resolução que contivesse a palavra genocídio. A incompetência da ONU para resolver a crise em Ruanda é algo que deve ser sempre lembrado. Também é revoltante a escandalosa cumplicidade das autoridades políticas e militares da França na preparação e implementação da carnificina.

Nove meses depois que a FPR libertou Kigali, mais de 750 mil ex-exilados tutsis estavam de volta a Ruanda. Os ruandeses em regresso vinham de toda a África e de ainda mais longe. Mesmo os líderes da FPR estavam espantados com a escala dessa volta. Outros milhares de ruandeses voltaram ao seu país depois do desmantelamento dos campos de refugiados no Zaire (controlados por génocidaires hutus), o que ocorreu após os combates em que a Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo/Zaire, de Laurent Kabila, afastou do poder o ditador Mobutu.

No final do livro, para responder às frequentes perguntas sobre as esperanças para o futuro de Ruanda, Gourevitch cita uma história que aconteceu numa escola daquele país. Alunas adolescentes que receberam a ordem de se separarem (tutsis de um lado, hutus de outro) disseram que eram simplesmente ruandesas, e por isso foram espancadas e alvejadas indiscriminadamente. O exemplo das garotas que poderiam ter escolhido viver, mas em vez disso escolheram chamar a si próprias de ruandesas, deixando de lado noções equivocadas sobre raças humanas, algo que não existe, dá esperanças de que seja mais difundida a ideia da unidade e da dignidade da espécie humana e de que atrocidades como as de Ruanda em 1994 não se repitam no futuro.